domingo, 21 de setembro de 2014

NINFOMANÍACA – defasagens e desejo na narração I




Um beco em seus pormenores: paredes de tijolos, vigas de ferro, latas de lixo, chuva fina misturada uma escassa neve. A câmera passeia por esse ambiente sinistro e ermo que a modernidade herdou de um passado mais distante.

A protagonista, uma mulher esguia que já não é jovem, não sendo tampouco velha, vestida de calças jeans, botas, sobretudo, está deitada no chão do beco, inerte.

A cena seguinte é a de um corredor de uma habitação cujas paredes estão cobertas de livros. Há uma porta a frente e da esquerda surge um homem que apanha um cachecol e um casaco e veste-os para sair. A mão da mulher aparece suja de sangue. Uma parede com um buraco, possivelmente uma passagem de ar, aproxima-se e torna-se cada vez mais escuro. Um homem atravessa o labiríntico beco. Por uma fresta entrevemos a protagonista deitada no chão.

Num estranho recinto há um balcão onde vemos pendurado um impresso com o Menoráh. O homem examina um frasco cujo conteúdo líquido parece leite. Caminha e encontra Joe a quem tenta socorrer. Diz que irá solicitar uma ambulância. Joe recusa. O homem pergunta sobre a dor, Joe diz que existe e que não se importa. Joe pede apenas uma xícara de chá com leite. O homem ajuda Joe a levantar-se e a conduz para sua moradia.

Joe, vestida de pijama, deitada em uma cama no austero recinto, toma o líquido de uma grande xícara. O homem diz que vai lavar as roupas de Joe. Esta recusa que se lave o casaco que, segundo o bom homem, cheira muito mal. A seguir pergunta o que teria acontecido. – Foi roubada? Joe responde – É minha culpa. Sou um mau ser humano. O bom homem incentiva Joe a falar sobre o assunto, já sentado em uma cadeira que colocada em frente a cama. Joe diz que ele não entenderia e o homem insiste. Ela lhe que diz que não saberia como começar. Seu olhar vaga, e encontra pendurada na parede uma isca de pescaria. Ambos encontram aí um começo para a história. Aquilo que antes era parte da experiência e da memória precisa ser transmutado em linguagem.

O homem lhe conta que o hábito da pescaria havia começado para ele a partir da leitura de um livro, ainda quando criança. Ela encontra também seu começo, mas avisa que terá de contar “toda a história”, que seria longa e imoral, adverte. A isca transmuta-se na descoberta da própria vagina pela criança de dois anos. Relatam-se as descobertas infantis das sensações sexuais, a relação com uma mãe impaciente e um pai bondoso e complacente e a exigência por mais: “Talvez a única diferença entre mim e as outras pessoas é que eu sempre exigia mais do pôr do sol. Cores mais espetaculares quando o sol descia no horizonte. Esse é talvez, meu único pecado.”

A menina e seu pai, estão de olhos fechados, em um bosque, apenas recebendo e apreciando as sensações do vento no rosto e os sons das folhas. O pai conta histórias. Sensações e histórias; a produção do entrelaçamento, da trama entre um e outro. Uma das histórias era acerca do ciúme e inveja das árvores em relação a uma espécie em particular, o freixo. Parece que toda história, mesmo a das árvores, preza por algo de humano. Por outro lado, em uma primeira e vexaminosa relação sexual, na contagem das penetrações, o número de Fibonacci é reconhecido pelo interlocutor de Joe. Algo de extra humano e transcendental se interpõe na lógica puramente humana do desejo.

A que responde o desejo imperioso de contar e de ouvir histórias, encadear fatos, identificar causalidades e razões?

Contar uma história significa talvez exigir-se colocar um ponto final, impingir ao tempo um uma interrupção, forjar um pretérito e tratar o inacabado como encerramento. Aquele que conta coloca-se, portanto, num lugar perigoso, o lugar do morto, o lugar daquele para quem a história está encerrada.
Mas se nos contamos histórias é porque algum fantasma assombra, ou seja, o morto exige ainda, uma vida mais, o morto afirma sua presença entre os vivos, o passado assinala seu lugar no presente.

 Foucault aborda a história como negociação com a morte ao referir-se ao estatuto do narrador nas tradições clássicas:
...a narrativa ou a epopeia dos gregos, era destinada a perpetuar a imortalidade do herói, e se o herói aceitava morrer jovem, era porque sua vida, assim consagrada e magnificada pela morte, passava à imortalidade; a narrativa recupera essa morte aceita. De uma outra maneira, a narrativa árabe – eu penso em As mil e uma noites – também tinha, como motivação, tema e pretexto, não morrer: falava-se, narrava-se até o amanhecer para afastar a morte, para adiar o prazo desse desenlace que deveria fechar a boca do narrador. A narrativa de Shehrazade é o avesso encarniçado do assassínio, é o esforço de todas as noites para conseguir manter a morte fora do ciclo da existência.[1]

A exigência do morto ante os vivos é também a exigência da justiça. Se o pai de Hamlet volta para assombrar seu filho, é para demandar a inscrição na história, de uma usurpação e de um assassinato.
Ainda que a narrativa moderna implique uma outra  negociação com a morte (a escrita se exerce como apagamento mesmo do autor) é a finitude a companheira irredutível e exigente de toda narrativa.

No filme de Lars von Trier também alguém narra sua vida a outrem e, por tabela, a nós, espectadores. Essa redobra do ouvinte no espectador não será sem consequência porque é justamente a ignomínia da própria posição de espectador que nos lança na ferida aberta que o voyeurismo implica. Joe é a protagonista de aventuras limítrofes da experiência sexual. Shehrazade moderna, ela conta, não a seu esposo e suposto assassino, mas a seu suposto benfeitor - a partir do sexo, outro companheiro da morte - sua vida.

O diálogo entre os dois é límpido e fluido. A perspectiva sexual da vida da narradora segue sem recalcitrância. Aquele que ouve esforça-se, porém, por traduzir as experiências de Joe em seus próprios termos: a pescaria, seus propósitos, suas técnicas e ardis. A inábil tentativa de traduzir a experiência alheia na própria experiência é o fracasso a que o filme se consagra. Dedicados ao exercício de compreensão, o que se revela é seu impossível. Não é que Joe, a narradora, não pudesse por em palavras os ardis nos quais se envolvia, é que embora alguém ouça e insista, a compreensão nunca chega.

O espaço da narrativa, no filme de Lars Von Trier indica que no cerne da narrativa há algo que permanece inacessível à linguagem; há aí uma defasagem irredutível entre a experiência e a narração em sua contiguidade ao desejo e à morte.




[1] FOUCAULT, Michel. O que é um autor? In: FOUCAULT, Michel. Estética: literatura e pintura, música e cinema. Ditos e Escritos III. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006. P. 286.

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