Um beco em seus pormenores: paredes
de tijolos, vigas de ferro, latas de lixo, chuva fina misturada uma escassa
neve. A câmera passeia por esse ambiente sinistro e ermo que a modernidade
herdou de um passado mais distante.
A protagonista, uma mulher esguia
que já não é jovem, não sendo tampouco velha, vestida de calças jeans, botas,
sobretudo, está deitada no chão do beco, inerte.
A cena seguinte é a de um
corredor de uma habitação cujas paredes estão cobertas de livros. Há uma porta
a frente e da esquerda surge um homem que apanha um cachecol e um casaco e
veste-os para sair. A mão da mulher aparece suja de sangue. Uma parede com um
buraco, possivelmente uma passagem de ar, aproxima-se e torna-se cada vez mais
escuro. Um homem atravessa o labiríntico beco. Por uma fresta entrevemos a protagonista
deitada no chão.
Num estranho recinto há um balcão
onde vemos pendurado um impresso com o Menoráh. O homem examina um frasco cujo
conteúdo líquido parece leite. Caminha e encontra Joe a quem tenta socorrer.
Diz que irá solicitar uma ambulância. Joe recusa. O homem pergunta sobre a dor,
Joe diz que existe e que não se importa. Joe pede apenas uma xícara de chá com
leite. O homem ajuda Joe a levantar-se e a conduz para sua moradia.
Joe, vestida de pijama, deitada
em uma cama no austero recinto, toma o líquido de uma grande xícara. O homem
diz que vai lavar as roupas de Joe. Esta recusa que se lave o casaco que,
segundo o bom homem, cheira muito mal. A seguir pergunta o que teria
acontecido. – Foi roubada? Joe responde – É minha culpa. Sou um mau ser humano.
O bom homem incentiva Joe a falar sobre o assunto, já sentado em uma cadeira
que colocada em frente a cama. Joe diz que ele não entenderia e o homem
insiste. Ela lhe que diz que não saberia como começar. Seu olhar vaga, e
encontra pendurada na parede uma isca de pescaria. Ambos encontram aí um começo
para a história. Aquilo que antes era parte da experiência e da memória precisa
ser transmutado em linguagem.
O homem lhe conta que o hábito da
pescaria havia começado para ele a partir da leitura de um livro, ainda quando
criança. Ela encontra também seu começo, mas avisa que terá de contar “toda a
história”, que seria longa e imoral, adverte. A isca transmuta-se na descoberta
da própria vagina pela criança de dois anos. Relatam-se as descobertas infantis
das sensações sexuais, a relação com uma mãe impaciente e um pai bondoso e complacente
e a exigência por mais: “Talvez a única diferença entre mim e as outras pessoas
é que eu sempre exigia mais do pôr do sol. Cores mais espetaculares quando o
sol descia no horizonte. Esse é talvez, meu único pecado.”
A menina e seu pai, estão de
olhos fechados, em um bosque, apenas recebendo e apreciando as sensações do
vento no rosto e os sons das folhas. O pai conta histórias. Sensações e
histórias; a produção do entrelaçamento, da trama entre um e outro. Uma das
histórias era acerca do ciúme e inveja das árvores em relação a uma espécie em
particular, o freixo. Parece que toda história, mesmo a das árvores, preza por
algo de humano. Por outro lado, em uma primeira e vexaminosa relação sexual, na
contagem das penetrações, o número de Fibonacci é reconhecido pelo interlocutor
de Joe. Algo de extra humano e transcendental se interpõe na lógica puramente
humana do desejo.
A que responde o desejo imperioso
de contar e de ouvir histórias, encadear fatos, identificar causalidades e
razões?
Contar uma história significa
talvez exigir-se colocar um ponto final, impingir ao tempo um uma interrupção,
forjar um pretérito e tratar o inacabado como encerramento. Aquele que conta
coloca-se, portanto, num lugar perigoso, o lugar do morto, o lugar daquele para
quem a história está encerrada.
Mas se nos contamos histórias é
porque algum fantasma assombra, ou seja, o morto exige ainda, uma vida mais, o
morto afirma sua presença entre os vivos, o passado assinala seu lugar no
presente.
Foucault aborda a história como negociação com
a morte ao referir-se ao estatuto do narrador nas tradições clássicas:
...a narrativa ou a epopeia dos
gregos, era destinada a perpetuar a imortalidade do herói, e se o herói
aceitava morrer jovem, era porque sua vida, assim consagrada e magnificada pela
morte, passava à imortalidade; a narrativa recupera essa morte aceita. De uma
outra maneira, a narrativa árabe – eu penso em As mil e uma noites – também tinha, como motivação, tema e
pretexto, não morrer: falava-se, narrava-se até o amanhecer para afastar a
morte, para adiar o prazo desse desenlace que deveria fechar a boca do
narrador. A narrativa de Shehrazade é o avesso encarniçado do assassínio, é o
esforço de todas as noites para conseguir manter a morte fora do ciclo da
existência.[1]
A exigência do morto ante os
vivos é também a exigência da justiça. Se o pai de Hamlet volta para assombrar
seu filho, é para demandar a inscrição na história, de uma usurpação e de um
assassinato.
Ainda que a narrativa moderna
implique uma outra negociação com a
morte (a escrita se exerce como apagamento mesmo do autor) é a finitude a
companheira irredutível e exigente de toda narrativa.
No filme de Lars von Trier também
alguém narra sua vida a outrem e, por tabela, a nós, espectadores. Essa redobra
do ouvinte no espectador não será sem consequência porque é justamente a
ignomínia da própria posição de espectador que nos lança na ferida aberta que o
voyeurismo implica. Joe é a protagonista de aventuras limítrofes da experiência
sexual. Shehrazade moderna, ela conta, não a seu esposo e suposto assassino,
mas a seu suposto benfeitor - a partir do sexo, outro companheiro da morte -
sua vida.
O diálogo entre os dois é límpido
e fluido. A perspectiva sexual da vida da narradora segue sem recalcitrância. Aquele
que ouve esforça-se, porém, por traduzir as experiências de Joe em seus
próprios termos: a pescaria, seus propósitos, suas técnicas e ardis. A inábil
tentativa de traduzir a experiência alheia na própria experiência é o fracasso
a que o filme se consagra. Dedicados ao exercício de compreensão, o que se
revela é seu impossível. Não é que Joe, a narradora, não pudesse por em
palavras os ardis nos quais se envolvia, é que embora alguém ouça e insista, a
compreensão nunca chega.
O espaço da narrativa, no filme
de Lars Von Trier indica que no cerne da narrativa há algo que permanece
inacessível à linguagem; há aí uma defasagem irredutível entre a experiência e
a narração em sua contiguidade ao desejo e à morte.
[1]
FOUCAULT, Michel. O que é um autor? In: FOUCAULT, Michel. Estética: literatura
e pintura, música e cinema. Ditos e Escritos III. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2006. P. 286.
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