OLutas.docé uma série de televisão com 5
documentários curta-metragem de 24 minutos. Uma produção da Buriti Filmes,
dirigida por Luiz Bolognesi e Daniel Sampaio. De acordo com os realizadores, a
proposta da série é realizar "reflexões profundas sobre a violência, seus
contextos e formas de representação na história do Brasil".
Basicamente, são documentários televisivos estruturados no
modelo "talking heads", com animações intercalando as falas. Aliás,
grande parte das animações inseridas são trechos do longa-metragemUma história de amor e fúria - animação
também realizada pela Buriti Filmes. Mas, ainda, há animações de grafismo, como
apresentação de dados estatísticos, por exemplo.
A narrativa deLutas.doc é
construída pela montagem de falas de entrevistados - característica essa
essencial do modelo de documentário "talking heads". Nesta produção,
há participação de historiadores, cientistas sociais, economistas, políticos,
entre outros. Assim, são personagens que Jean-Claude Bernardet, emCineastas e imagens do povo, define
como "locutores auxiliares", ou seja, personagens que "estão
numa posição de poder, quer pelo saber, quer pelo cargo que ocupam, bem como
pela função que desempenham no sistema de informação dos filmes" (2003,
p.26).
Portanto, podemos perceber emLutas.doc uma
série de documentários que não ousa ou experimenta muito em narrativa, mas que,
apesar disso, tem uma montagem dinâmica e, ao meu ver, atinge com sucesso o
objetivo de discutir uma série de temas complexos a partir da violência como
norteador do debate, transpondo esse conteúdo para uma linguagem mais simples e
acessível.
Ainda que exista uma pretensão de compreensão totalizante
do tema discutido, ao propor-se à composição por meio de diversas falas de
diferentes pessoas, a série dá abertura para a contradição ou inconclusividade
- o que, ao meu ver, é positivo. Mas, por outro lado, não é possível ignorar
aqui que os diretores constroem o discurso da série (logo, o discurso deles) a
partir da montagem dessas entrevistas.
OLutas.docfoi exibido inicialmente em janeiro de
2010 na TV Brasil, mas encontra-se disponível na íntegra no You Tube.
Um beco em seus pormenores: paredes
de tijolos, vigas de ferro, latas de lixo, chuva fina misturada uma escassa
neve. A câmera passeia por esse ambiente sinistro e ermo que a modernidade
herdou de um passado mais distante.
A protagonista, uma mulher esguia
que já não é jovem, não sendo tampouco velha, vestida de calças jeans, botas,
sobretudo, está deitada no chão do beco, inerte.
A cena seguinte é a de um
corredor de uma habitação cujas paredes estão cobertas de livros. Há uma porta
a frente e da esquerda surge um homem que apanha um cachecol e um casaco e
veste-os para sair. A mão da mulher aparece suja de sangue. Uma parede com um
buraco, possivelmente uma passagem de ar, aproxima-se e torna-se cada vez mais
escuro. Um homem atravessa o labiríntico beco. Por uma fresta entrevemos a protagonista
deitada no chão.
Num estranho recinto há um balcão
onde vemos pendurado um impresso com o Menoráh. O homem examina um frasco cujo
conteúdo líquido parece leite. Caminha e encontra Joe a quem tenta socorrer.
Diz que irá solicitar uma ambulância. Joe recusa. O homem pergunta sobre a dor,
Joe diz que existe e que não se importa. Joe pede apenas uma xícara de chá com
leite. O homem ajuda Joe a levantar-se e a conduz para sua moradia.
Joe, vestida de pijama, deitada
em uma cama no austero recinto, toma o líquido de uma grande xícara. O homem
diz que vai lavar as roupas de Joe. Esta recusa que se lave o casaco que,
segundo o bom homem, cheira muito mal. A seguir pergunta o que teria
acontecido. – Foi roubada? Joe responde – É minha culpa. Sou um mau ser humano.
O bom homem incentiva Joe a falar sobre o assunto, já sentado em uma cadeira
que colocada em frente a cama. Joe diz que ele não entenderia e o homem
insiste. Ela lhe que diz que não saberia como começar. Seu olhar vaga, e
encontra pendurada na parede uma isca de pescaria. Ambos encontram aí um começo
para a história. Aquilo que antes era parte da experiência e da memória precisa
ser transmutado em linguagem.
O homem lhe conta que o hábito da
pescaria havia começado para ele a partir da leitura de um livro, ainda quando
criança. Ela encontra também seu começo, mas avisa que terá de contar “toda a
história”, que seria longa e imoral, adverte. A isca transmuta-se na descoberta
da própria vagina pela criança de dois anos. Relatam-se as descobertas infantis
das sensações sexuais, a relação com uma mãe impaciente e um pai bondoso e complacente
e a exigência por mais: “Talvez a única diferença entre mim e as outras pessoas
é que eu sempre exigia mais do pôr do sol. Cores mais espetaculares quando o
sol descia no horizonte. Esse é talvez, meu único pecado.”
A menina e seu pai, estão de
olhos fechados, em um bosque, apenas recebendo e apreciando as sensações do
vento no rosto e os sons das folhas. O pai conta histórias. Sensações e
histórias; a produção do entrelaçamento, da trama entre um e outro. Uma das
histórias era acerca do ciúme e inveja das árvores em relação a uma espécie em
particular, o freixo. Parece que toda história, mesmo a das árvores, preza por
algo de humano. Por outro lado, em uma primeira e vexaminosa relação sexual, na
contagem das penetrações, o número de Fibonacci é reconhecido pelo interlocutor
de Joe. Algo de extra humano e transcendental se interpõe na lógica puramente
humana do desejo.
A que responde o desejo imperioso
de contar e de ouvir histórias, encadear fatos, identificar causalidades e
razões?
Contar uma história significa
talvez exigir-se colocar um ponto final, impingir ao tempo um uma interrupção,
forjar um pretérito e tratar o inacabado como encerramento. Aquele que conta
coloca-se, portanto, num lugar perigoso, o lugar do morto, o lugar daquele para
quem a história está encerrada.
Mas se nos contamos histórias é
porque algum fantasma assombra, ou seja, o morto exige ainda, uma vida mais, o
morto afirma sua presença entre os vivos, o passado assinala seu lugar no
presente.
Foucault aborda a história como negociação com
a morte ao referir-se ao estatuto do narrador nas tradições clássicas:
...a narrativa ou a epopeia dos
gregos, era destinada a perpetuar a imortalidade do herói, e se o herói
aceitava morrer jovem, era porque sua vida, assim consagrada e magnificada pela
morte, passava à imortalidade; a narrativa recupera essa morte aceita. De uma
outra maneira, a narrativa árabe – eu penso em As mil e uma noites – também tinha, como motivação, tema e
pretexto, não morrer: falava-se, narrava-se até o amanhecer para afastar a
morte, para adiar o prazo desse desenlace que deveria fechar a boca do
narrador. A narrativa de Shehrazade é o avesso encarniçado do assassínio, é o
esforço de todas as noites para conseguir manter a morte fora do ciclo da
existência.[1]
A exigência do morto ante os
vivos é também a exigência da justiça. Se o pai de Hamlet volta para assombrar
seu filho, é para demandar a inscrição na história, de uma usurpação e de um
assassinato.
Ainda que a narrativa moderna
implique uma outra negociação com a
morte (a escrita se exerce como apagamento mesmo do autor) é a finitude a
companheira irredutível e exigente de toda narrativa.
No filme de Lars von Trier também
alguém narra sua vida a outrem e, por tabela, a nós, espectadores. Essa redobra
do ouvinte no espectador não será sem consequência porque é justamente a
ignomínia da própria posição de espectador que nos lança na ferida aberta que o
voyeurismo implica. Joe é a protagonista de aventuras limítrofes da experiência
sexual. Shehrazade moderna, ela conta, não a seu esposo e suposto assassino,
mas a seu suposto benfeitor - a partir do sexo, outro companheiro da morte -
sua vida.
O diálogo entre os dois é límpido
e fluido. A perspectiva sexual da vida da narradora segue sem recalcitrância. Aquele
que ouve esforça-se, porém, por traduzir as experiências de Joe em seus
próprios termos: a pescaria, seus propósitos, suas técnicas e ardis. A inábil
tentativa de traduzir a experiência alheia na própria experiência é o fracasso
a que o filme se consagra. Dedicados ao exercício de compreensão, o que se
revela é seu impossível. Não é que Joe, a narradora, não pudesse por em
palavras os ardis nos quais se envolvia, é que embora alguém ouça e insista, a
compreensão nunca chega.
O espaço da narrativa, no filme
de Lars Von Trier indica que no cerne da narrativa há algo que permanece
inacessível à linguagem; há aí uma defasagem irredutível entre a experiência e
a narração em sua contiguidade ao desejo e à morte.
[1]
FOUCAULT, Michel. O que é um autor? In: FOUCAULT, Michel. Estética: literatura
e pintura, música e cinema. Ditos e Escritos III. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2006. P. 286.